terça-feira, 25 de agosto de 2015


Medo de Errar - Martha Medeiros


A gente é a soma das nossas decisões.

É uma frase da qual sempre gostei, mas lembrei dela outro dia num local inusitado: dentro do súper. Comprar maionese, band-aid e iogurte, por exemplo, hoje requer expertise. Tem maionese tradicional, light, premium, com leite, com ômega 3, com limão, com ovos “free range”. Band-aid, há de todos os formatos e tamanhos, nas versões transparente, extratransparente, colorido, temático, flexível. 

Absorvente com aba e sem aba, com perfume e sem

perfume, cobertura seca ou suave. Creme dental contra o amarelamento, contra o tártaro, contra o mau hálito, contra a cárie, contra as bactérias. É o melhor dos mundos: aumentou a diversificação. E com ela, o medo de errar. 

Assim como antes era mais fácil fazer compras, também era mais fácil viver. Para ser feliz, bastava estudar (magistério para as moças), fazer uma faculdade (Medicina, Engenharia ou Direito para os rapazes), casar (com o sexo oposto), ter filhos (no mínimo dois) e manter a família estruturada até o fim do dias. Era a maionese tradicional. 


Hoje, existem várias “marcas” de felicidade. Casar, não casar, juntar, ficar, separar. Homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher. Ter filhos biológicos, adotar, inseminação artificial, barriga de aluguel – ou simplesmente não tê-los. 

Fazer intercâmbio, abrir o próprio negócio, tentar um concurso público, entrar para a faculdade. Mas estudar o quê? Só de cursos técnicos, profissionalizantes e universitários, há centenas. Computação Gráfica ou Informática Biomédica? Editoração ou Ciências Moleculares? Moda, Geofísica ou Engenharia de Petróleo?


A vida padronizada podia ser menos estimulante, mas oferecia mais segurança, era fácil “acertar” e se sentir um adulto. Já a expansão de ofertas tornou tudo mais empolgante, só que incentivou a infantilização: sem saber ao certo o que é melhor para si, surgiu o medo de crescer. 


Todos parecem ter 10 anos menos. Quem tem 17, age como se tivesse 7. Quem tem 28, parece ter 18. Quem tem 39, vive como se fossem 29. Quem tem 40, 50, 60, mesma coisa. Por um lado, é ótimo ter um espírito jovial e a aparência idem, mas até quando se pode adiar a maturidade? 


Só nos tornamos verdadeiramente adultos quando perdemos o medo de errar. Não somos apenas a soma das nossas escolhas, mas também das nossas renúncias. Crescer é tomar decisões e, depois, conviver pacificamente com a dúvida. Adolescentes prorrogam suas escolhas porque querem ter certeza absoluta – errar lhes parece a morte. 

Adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada, e sabem também que só a morte física é definitiva. Já “morreram” diante de fracassos e frustrações, e voltaram pra vida. Ao entender que é normal morrer várias vezes numa única existência, perdemos o medo – e finalmente crescemos.

Página: 19 à 20

domingo, 16 de agosto de 2015


Em que esquina eu dobrei errado
 (Felicidade Crônica) - Martha Medeiros


Aconteceu em Paris. Estava sozinha e tinha duas horas livres antes de chamar o táxi que me levaria ao aeroporto, de onde embarcaria de volta para o Brasil. Mala fechada, resolvi gastar esse par de horas caminhando até a Place des Voges, que era perto do hotel. Depois de chuvas torrenciais, fazia sol na minha última manhã na cidade, então Place des Voges, lá vou eu. E fui.
Sem um mapa à mão, tinha certeza de que acertaria o caminho, não era minha primeira vez na cidade. Mas por um desatino do meu senso de orientação, dobrei errado numa esquina. Em vez de ir para a esquerda, entrei à direita. Mais adiante, aí sim, virei à esquerda, mas não encontrei nenhuma referência do que desejava. Segui reto: estaria a Place des Voges logo em frente? Mais umas quadras, esquerda de novo. Gozado, era por aqui, eu pensava. Não que fosse um sacrifício se perder em Paris, mas eu parecia estar mais longe do hotel do que era conveniente. Mais caminhada, e então, várias quadras adiante, não foi a Place des Voges que surgiu, e sim a Place de la Republique. Eu tinha atravessado uns três bairros de Paris, mon Dieu.
Perguntei a um morador o caminho mais curto para voltar à rua onde ficava meu hotel, e ele me apontou um táxi. Teimosa, pensei: ainda tenho um tempinho, voltarei a pé. E assim foram minhas duas últimas horas em Paris, uma estabanada andando às pressas, saltando as poças da noite anterior, olhando aflita para o relógio em vez de flanar como a cidade pede. Cheguei bufando no hotel, peguei minha mala e, por causa da correria, esqueci no hall de entrada uma gravura linda que havia comprado e que planejava trazer em mãos no voo. Tudo por causa de uma esquina que dobrei errado.
Foram apenas duas horas inúteis e cansativas, e duas horas não é nada na vida de ninguém. Mas quanta gente perde a vida que almejou por ter virado numa esquina que não conduzia a lugar algum?
Alguns desacertos pelo caminho fazem a gente perder três anos da nossa juventude, fazem a gente perder uma oportunidade profissional, fazem a gente perder um amor, fazem a gente perder uma chance de evoluir. Por desorientação, vamos parar no lado oposto de onde nos aguardava uma área de conforto, onde encontraríamos pessoas afetivas e uma felicidade não de cinema, mas real. Por sair em desatino sem a humildade de pedir informação a quem conhece bem o trajeto ou de consultar um mapa, gastamos sola de sapato à toa e um tempo que ninguém tem para esbanjar. Se a vida fosse férias em Paris, perder-se poderia resultar apenas numa aventura, mesmo com o risco de o avião partir sem nós. Mas a vida não é férias em Paris, e aí um dia a gente se olha no espelho e enxerga um rosto envelhecido e amargurado, um rosto de quem não realizou o que desejava, não alcançou suas metas, perdeu o rumo: não consegue voltar para o início, para os seus amores, para as suas verdades, para o que deixou pra trás. Não existe GPS que assegure se estamos no caminho certo. Só nos resta prestar mais atenção.


Página: 94 à 95

domingo, 9 de agosto de 2015



Haja Paciência - Cora Ronái


Não posso me queixar das pessoas que frequentam a minha página no Facebook: a maioria é tão simpática que, em geral, nem sei como retribuir tanta gentileza. É verdade que só têm acesso à área de comentários os meus amigos e os amigos dos meus amigos, mas ainda assim esse contingente chega a vários milhares. É verdade também que isso limita um pouco o espectro de opiniões manifestadas, já que dificilmente alguém busca a amizade virtual de quem pensa de forma muito diferente da sua — mas o mundo está tão polarizado que nem tenho certeza se isso é mesmo uma desvantagem.


Às vezes algum governista desgarrado se queixa, contrariado, perguntando que espécie de democracia eu proponho se não abro os comentários para todo mundo. A resposta é simples: proponho uma democracia absoluta, em que cada um tem o direito de dizer rigorosamente o que quiser... na sua própria página.

O Facebook em si é um espaço público, uma grande praça aberta para todos; as páginas individuais, porém, são espaços privados, ainda que seus proprietários sejam figuras públicas. Como as mídias sociais são um território novo, em plena fase de formação, ainda há muita confusão em relação aos limites desses espaços; mesmo pessoas educadas, que ficariam horrorizadas diante da simples ideia de invadir a minha casa e cuspir nas minhas visitas, acham-se no direito de entrar na minha página aos pontapés, dirigindo cusparadas virtuais a torto e a direito.

A proposta de grandes debates civilizados online é bonita e democrática, mas é igualmente utópica, e este não é um problema apenas brasileiro. Em qualquer parte do mundo, os temas mais triviais descambam para discussões assassinas que não levam a nada, até porque não são trocas de ideias, e sim tentativas de fazer prevalecer um ou outro ponto de vista. E haja xingamentos e recriminações!

O fato é que, nas mídias sociais, todos se ofendem por tudo.Muito.O tempo todo.
Daqui a pouco vai ser impossível dar “Bom dia” sem que os que preferem a tarde ou a noite não se sintam mortalmente insultados.

Costumo publicar no Instagram pequenos textos com pensamentos que, em tese, teriam passado pela cabeça dos meus gatos. São — nem preciso dizer — simples exercícios de imaginação, que servem como legendas para as fotos, e vêm invariavelmente entre aspas, para que fique claro que foram escritos como supostas citações. Essa semana escrevi um para a Lolinha:

“Dizem que os cães não conseguem ver cores. Faz sentido. Eles não são gatos, coitados. Têm suas limitações.”

A crença de que os cães não enxergam cores caiu há tempos, mas achei que a Lolinha preferiria manter a noção anterior. Como boa gata que é, ela deve se sentir infinitamente superior aos cães; gatos sempre se sentem infinitamente superiores.
Compartilhei foto e legenda no Facebook. Pois não é que donos de cães se meteram em brios?

“Coitado, eu diria, é de quem não dá valor aos seus animais de estimação” escreveu um deles; “gatos, cães, bois, leões, que importa como enxergam? Todos são lindos e todos são perfeitos. Ah, os gatos não enxergam todas as cores, têm limitações também”, escreveu outro.

Tive quer apagar alguns comentários mais exaltados.
Eu estava voltando de São Paulo e peguei o Aeroporto de Congonhas fechado. Caos absoluto, voos cancelados, atrasos horrendos. Fui publicando pequenas atualizações de status. Finalmente, quando embarquei, descrevi a situação em que me encontrava:
“Estou num assento do meio. E atrás de mim há uma criança aos berros. Às vezes a nossa paciência é testada de formas bizarras...”

Pronto!

Fui chamada de fresca e de insensível, e incontáveis pessoas fizeram questão de sacudir o dedo metafórico no meu nariz, me ensinando que crianças sentem dor de ouvido durante o voo — embora, é claro, o avião ainda não tivesse decolado, ou o texto não poderia ter sido postado.

“Se não quer ficar perto de crianças vai de transporte individual, acho ridícula essa postura!” — e por aí vai. Ficou tão esquisita a coisa que acabei bloqueando meia dúzia de pessoas para manter a minha sanidade mental. Até agora ainda não consegui descobrir o que há de ofensivo em constatar que assentos do meio e crianças aos berros são testes de paciência.

A morte do leão Cecil, que tanta tristeza causou, está tendo, afinal, alguns aspectos positivos. Botswana proibiu a caça esportiva, algumas companhias aéreas passaram a se recusar a transportar troféus de caça e a Assembleia Geral das Nações Unidas se propôs a trabalhar junto com os países africanos para tentar acabar com a mortandade de animais. O mais importante é que esta aberração psicopata chamada caça veio para o centro das discussões, e com intensidade suficiente para que políticos e empresas do mundo inteiro percebam que é uma atividade cada vez menos popular.

Enquanto isso, no Facebook, os eternos justiceiros morais continuam patrulhando as pessoas que lamentam o assassinato do pobre leão, alegando ser hipocrisia chorar o Cecil e não os incontáveis animais anônimos que continuam a ser dizimados. Do alto da sua obtusidade e má fé, não percebem que, justamente por ter nome e biografia, Cecil pode deixar de ser estatística para se transformar em símbolo.
Que preguiça, viu.


*Fonte: O Globo

domingo, 2 de agosto de 2015


Amores Fast-Food Matam o Coração - Karen Curi
A fome é tanta, a pressa, a ânsia pela saciedade consome os apressados. O mundo anda mesmo tão corrido… As vontades e quereres, sempre tão urgentes, precisam ser prontamente atendidos porque ninguém aguenta esperar que chova na sua horta. Dizem os mais inquietos que esperar é para os acomodados, que devemos correr atrás dos sonhos, abrir os caminhos do nosso destino, botar a mão na massa e fazer acontecer. Concordo. Só que existe um porém; corre-se demais sem saber realmente o que buscar, e no desespero de conseguir o que quer — ou a ilusão do que se almeja — os apressados se perdem, se enveredam em toda e qualquer saída. A fim de alcançar o maior número de conquistas (que neste caso não são vitórias), deixa-se de dar importância às consequências que cada uma delas traz ao coração.

Preciso confessar que eu faço parte do time dos maratonistas da vida. Sim. Quero tudo pra ontem, não me acomodo nas comodidades que meus dias me regalam. Me apavoro só de pensar numa vida sem mudanças, na rotina perfeitamente traçada sem direito a desvios. Não me bastam as certezas do meu universo, nem a quietude de uma espera consentida no portão. Eu quero mais é vendaval, tormentas abruptas que levam embora o que não é firme o bastante para permanecer. Só dessa forma eu consigo admirar a calmaria da manhã seguinte e valorar o que ficou de profundo e enraizado.
O problema de ser assim, apreciadora da velocidade por viver, é que quando os ventos não andam soprando lá com tanta veemência, a falta de emoção — mais conhecida como mesmice — cresce vertiginosamente aqui dentro. Impaciência, inquietude, incredulidade, inconformismo. Tudo junto.
Mas enquanto o estilo apressado de ser e querer e sentir não chega ao coração, tudo bem. Porque o coração não pode, nem deve ser manejado com afobamento, ou sob qualquer outro tipo de pressão. O amor é único em sua amplitude absolutamente sucinta. Lê-se: Único. Amor não é sexo, não é afinidade, não é amizade, necessidade, nem paixão ou compaixão, desejo, ensejo. Nada disso. Amor é amor. Assim, simplesmente e lindamente.
Acontece que, muitas vezes, o desespero por viver o amor é tão imenso, praticamente incontrolável, que a cegueira acomete os olhos do apurado por amar. De certo que o amor é cego, mas o anseio por ele obstrui a visão e todos os outros sentidos. A pessoa quer porque quer ter alguém para chamar de seu. E diante da pressão de encontrá-lo despeja-se sobre qualquer alma as suas vontades e planos, sem respeitar a si próprio, sem considerar o outro. Perde-se o critério de avaliação de sentimentos, de compatibilidade, as sensações se confundem e se misturam umas às outras.
Dessa forma, é dada a largada aos amores de fast-food. Esfomeados em busca de uma embalagem bonita, alguém que lhes salte os olhos e sacie a fome de amar e ser amado naquele instante. Tem que ser agora, deve ser pra já. A sede matada na saliva, e o coração que morra afogado nas lágrimas do dia seguinte. Sim, porque depois de tantas trocas, tornam-se mais estranhos do que antes de terem sido apresentados.
Corações deveriam ser alvos de amor pra se lançar sonhos a dois, cumplicidade, tantas coisas boas, e não um pano de chão para que qualquer um limpe os pés na entrada e pise na saída.
Na pressa por viver um amor e em busca de ser feliz junto a alguém, as pessoas se atropelam em euforias, bocas e corpos. Não estou dizendo que se deva ser um monge e viver recluso às possibilidades amorosas. Não é isso. Aliás, eu, como parte do time dos corredores pela vida, penso que estamos aqui para viver de forma ampla, trocar experiências, ser feliz e fazer feliz. Mas acredito, sinceramente, que o coração não é um brinquedo, nem objeto de tortura, muito menos algo perecível com prazo de validade para se usar e descartar. Aliás, nas questões do amor, deve-se ter cautela para que ninguém saia, pelo menos, tão ferido.
Está praticamente imposto que trouxa é aquele que preserva o seu coração, que se ama e se respeita acima de tudo. Porque legal mesmo é sair traçando tudo o que se vê pela frente, deixando fluídos por aqui e acolá, espalhando sementes em terras úmidas sem a menor precaução e preocupação com o terreno alheio. Não se engane. A fome desvairada por provar todos os quitutes da festa passa, e o vazio que fica é um buraco tão fundo e tão escuro que vai desencadear meses de insônia e muito, mas muito arrependimento por ter sido tão permissivo.
Portanto, antes que nos deixemos tomar pela ansiedade de degustar os amores de fast-food, por que não nos alimentamos, antes de tudo, de amor próprio, de confiança, de respeito? Que nos amemos primeiro e nos provemos primeiro antes de oferecer um bocado à qualquer morto de fome.
Se o amor não tem limite, que a caridade amorosa tenha.