Haja Paciência - Cora Ronái
Não posso me queixar das pessoas que frequentam a minha página no Facebook: a maioria é tão simpática que, em geral, nem sei como retribuir tanta gentileza. É verdade que só têm acesso à área de comentários os meus amigos e os amigos dos meus amigos, mas ainda assim esse contingente chega a vários milhares. É verdade também que isso limita um pouco o espectro de opiniões manifestadas, já que dificilmente alguém busca a amizade virtual de quem pensa de forma muito diferente da sua — mas o mundo está tão polarizado que nem tenho certeza se isso é mesmo uma desvantagem.
Às vezes algum governista desgarrado se queixa, contrariado, perguntando que espécie de democracia eu proponho se não abro os comentários para todo mundo. A resposta é simples: proponho uma democracia absoluta, em que cada um tem o direito de dizer rigorosamente o que quiser... na sua própria página.
O Facebook em si é um espaço público, uma grande praça aberta para todos; as páginas individuais, porém, são espaços privados, ainda que seus proprietários sejam figuras públicas. Como as mídias sociais são um território novo, em plena fase de formação, ainda há muita confusão em relação aos limites desses espaços; mesmo pessoas educadas, que ficariam horrorizadas diante da simples ideia de invadir a minha casa e cuspir nas minhas visitas, acham-se no direito de entrar na minha página aos pontapés, dirigindo cusparadas virtuais a torto e a direito.
A proposta de grandes debates civilizados online é bonita e democrática, mas é igualmente utópica, e este não é um problema apenas brasileiro. Em qualquer parte do mundo, os temas mais triviais descambam para discussões assassinas que não levam a nada, até porque não são trocas de ideias, e sim tentativas de fazer prevalecer um ou outro ponto de vista. E haja xingamentos e recriminações!
O fato é que, nas mídias sociais, todos se ofendem por tudo.Muito.O tempo todo.
Daqui a pouco vai ser impossível dar “Bom dia” sem que os que preferem a tarde ou a noite não se sintam mortalmente insultados.
Costumo publicar no Instagram pequenos textos com pensamentos que, em tese, teriam passado pela cabeça dos meus gatos. São — nem preciso dizer — simples exercícios de imaginação, que servem como legendas para as fotos, e vêm invariavelmente entre aspas, para que fique claro que foram escritos como supostas citações. Essa semana escrevi um para a Lolinha:
“Dizem que os cães não conseguem ver cores. Faz sentido. Eles não são gatos, coitados. Têm suas limitações.”
A crença de que os cães não enxergam cores caiu há tempos, mas achei que a Lolinha preferiria manter a noção anterior. Como boa gata que é, ela deve se sentir infinitamente superior aos cães; gatos sempre se sentem infinitamente superiores.
Compartilhei foto e legenda no Facebook. Pois não é que donos de cães se meteram em brios?
“Coitado, eu diria, é de quem não dá valor aos seus animais de estimação” escreveu um deles; “gatos, cães, bois, leões, que importa como enxergam? Todos são lindos e todos são perfeitos. Ah, os gatos não enxergam todas as cores, têm limitações também”, escreveu outro.
Tive quer apagar alguns comentários mais exaltados.
Eu estava voltando de São Paulo e peguei o Aeroporto de Congonhas fechado. Caos absoluto, voos cancelados, atrasos horrendos. Fui publicando pequenas atualizações de status. Finalmente, quando embarquei, descrevi a situação em que me encontrava:
“Estou num assento do meio. E atrás de mim há uma criança aos berros. Às vezes a nossa paciência é testada de formas bizarras...”
Pronto!
Fui chamada de fresca e de insensível, e incontáveis pessoas fizeram questão de sacudir o dedo metafórico no meu nariz, me ensinando que crianças sentem dor de ouvido durante o voo — embora, é claro, o avião ainda não tivesse decolado, ou o texto não poderia ter sido postado.
“Se não quer ficar perto de crianças vai de transporte individual, acho ridícula essa postura!” — e por aí vai. Ficou tão esquisita a coisa que acabei bloqueando meia dúzia de pessoas para manter a minha sanidade mental. Até agora ainda não consegui descobrir o que há de ofensivo em constatar que assentos do meio e crianças aos berros são testes de paciência.
A morte do leão Cecil, que tanta tristeza causou, está tendo, afinal, alguns aspectos positivos. Botswana proibiu a caça esportiva, algumas companhias aéreas passaram a se recusar a transportar troféus de caça e a Assembleia Geral das Nações Unidas se propôs a trabalhar junto com os países africanos para tentar acabar com a mortandade de animais. O mais importante é que esta aberração psicopata chamada caça veio para o centro das discussões, e com intensidade suficiente para que políticos e empresas do mundo inteiro percebam que é uma atividade cada vez menos popular.
Enquanto isso, no Facebook, os eternos justiceiros morais continuam patrulhando as pessoas que lamentam o assassinato do pobre leão, alegando ser hipocrisia chorar o Cecil e não os incontáveis animais anônimos que continuam a ser dizimados. Do alto da sua obtusidade e má fé, não percebem que, justamente por ter nome e biografia, Cecil pode deixar de ser estatística para se transformar em símbolo.
Que preguiça, viu.
*Fonte: O Globo
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